sexta-feira, 31 de maio de 2013

Aos meus pais e meu irmão

Amanhã completo 22. Faz onze anos que entrei na quinta série. Fui estudar no centro da cidade, porque as escolas da periferia onde eu morava eram barra pesada. Conquistei um território.
Pegava o ônibus sentido centro sozinho. Descia numa feira de camelôs e uma vez tive que encarar dois travestis que estavam atrás de mim e um amigo meu. O centro era barra pesada, mas eu encarava numa boa. Mataram um vendedor de bilhete de ônibus na porta da minha escola, e quando eu cheguei, só vi o corpo coberto por um saco preto e a polícia afastando as crianças curiosas. A tia mandou a gente entrar.
Tinha um amigo, o Jefferson, que morava em outro extremo da cidade, em outra periferia. Às vezes fazíamos trabalhos de geografia juntos, na casa dele, no alto do morro, na favela. Passávamos por becos, vielas, terrenos baldios e casas abandonadas pra chegar até a casa dele. Eu já havia conquistado o centro, depois conquistei a favela.
Com meu amigo Jefferson, comecei a escrever. Fazíamos paródias de músicas em inglês. Descobri que eu gostava muito de escrever, e isso me fez querer compor canções e ter uma banda. Com 16 anos, eu virei um desses adolescentes rebeldes que ficam vagando pelas ruas a noite. Eu me encontrava com meus amigos na porta de um shopping, no centro de uma cidade vizinha. Mas eu tinha que voltar cedo, porque dependia de três conduções para chegar em casa. Eu estava cada vez mais longe de casa.
A partir dos 19, já sendo maior de idade e podendo beber, fumar e ir preso, fui estudar numa faculdade muito mais distante, que me sugava as energias para me deslocar até lá todo dia. Era muito difícil ter que dirigir vários quilômetros para voltar pra casa todos os dias. Passar a noite bêbado na rua seria mais seguro e confortável. Bati o carro num poste enquanto tentava voltar pra casa antes do sol nascer. Quebrei a clavícula. Me arrependi.
Amanhã completo 22. Não tenho mais carro. Não tenho emprego. Meu dinheiro está praticamente contado para quitar as minhas dívidas e construir um projeto que provavelmente começou lá atrás, quando comecei a escrever canções. Moro no centro da cidade. E mais que isso: hoje sou o reflexo do que o centro da cidade construiu. Porém, isso não significa que não me identifico com o subúrbio. Minhas raízes estão lá, mas eu estou aqui. Eu vivo aqui porque é este ar poluído que eu pretendo respirar. E voltar às origens, às vezes, é bom, mas depois de provar a sensação de ser eu mesmo o tempo todo, não posso mais permanecer na casa em que morei por tanto tempo.
Minha mãe dizia, quando eu comecei a sair todos os fins de semana que podia: "Essa casa não é pensão! Você só dorme aqui!". Eu sabia que não era, e talvez só dormisse lá porque não me criei lá. Eu pertenço ao centro e o centro pertence a mim.
Eu sei que ela vai ler isso e pensar que estou sendo mal agradecido. Sei que aquela casa era tudo que tínhamos. Sou muito grato e tenho muito orgulho de contar a história de superação da nossa família, desde quando fomos morar lá, até as reformas e a casa pronta. Queria que ela soubesse que meu problema não é com a instituição Família ou com as pessoas que compõem essa instituição. Meu problema é unicamente geográfico, porque minha alma se formou aqui, desde sempre.

PS: Queria pedir desculpas por aparecer pouco. Sinto muita falta de vocês e estou sempre um pouco triste por vocês não estarem aqui. Queria que tudo estivesse perfeitamente encaixado para que possamos nos ver sempre que possível e eu possa me encontrar comigo mesmo nesse caos que é São Paulo, mas não sei como isso é possível. Como eu disse, meu problema com o Royal Park é puramente geográfico, mas talvez se eu tivesse estudado no Mathias, eu teria crescido como um desses que vocês conhecem, estaria dormindo aí e fazendo coisas muito piores e causando muito mais estragos ao coração de vocês. Queria que soubessem que eu me identifico com esse lugar a ponto de querer curar todas as feridas que qualquer coisa tenha me causado. Apesar das dificuldades, estou feliz e tá tudo bem, mas isso não tem relação com a ausência de vocês. Tenho um cachorro e uma varanda, e uma moça bonita cuidando de mim. Acho que vocês iam gostar de ver isso, e ver como eu cresci e como eu cuido das coisas sozinho. Eu amo vocês mais do que tudo no mundo e hoje percebo que só consigo enxergar isso de longe. Desculpa por sumir, queria vocês por perto.

http://www.youtube.com/watch?v=uUiycm1Mi-I

"E vou viver as coisas novas
Que também são boas
O amor, humor das praças
Cheias de pessoas
Agora eu quero tudo
Tudo outra vez..."

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