sexta-feira, 14 de junho de 2013

Estive na revolução e lembrei-me de você

Ontem saí de casa cedo. Não trabalho, então pude me preparar. No facebook, vi que só se falava sobre um assunto: a manifestação. "Quem vai, vai. Quem não vai, fica". Gente compartilhando fotos do protesto, gente compartilhando entrevistas nojentas de grandes veículos midiáticos, gente compartilhando editoriais e artigos tão ridículos que eu me perguntei até onde o dinheiro fala mais alto a ponto de você, um grande formador de opinião, e sua coluna no jornal da noite da maior emissora do país, subverter todo o conceito. Eu sabia que isso acontecia, mas nunca tinha visto com meus próprios olhos.
Resolvi arriscar. Todo esse papo de protesto, violência policial e suposto vandalismo era bem real nos meus jogos de videogame, minhas músicas e nos meus filmes preferidos. Mas eu nunca tinha ido pra rua, bater panela contra uma coisa que viola os meus direitos. Se Arnaldo Jabor me conhecesse, teria me julgado: "Moleque de classe média não tem direito de protestar!"
Mais um motivo pra eu não poder sair na rua, é que eu coloquei em minha mochila uma garrafa de vinagre. Fui espertinho. Li sobre os efeitos do gás lacrimogênio e como o vinagre poderia ajudar nesses casos. Enfim, bem preparado, fui encontrar minha namorada no bairro do Itaim, onde ela trabalha, pra irmos juntos até o Theatro Municipal, onde o manifesto se organizaria.
Pra piorar minha imagem com o Jabor, eu nunca tinha andado de ônibus em São Paulo. Faz oito meses que eu moro nessa cidade e só andei de metrô. Não por opção, mas sim porque nunca precisei. Ai se o jornalista soubesse disso: "peraí, você é um playboyzinho em seu sabático, que foi buscar a namorada no Itaim, pra protestar contra 20 centavinhos de um ônibus que você nem usa normalmente? quem devia protestar contra isso é a população pobre, o proletariado, o favelado que precisa de seis conduções pra ir e voltar do trabalho, e não você, vagabundo que mora na Vila Mariana."
Mas Jabor não deve ter conhecido os operários que foram meus colegas há algum tempo atrás, que nem são tão pobres assim, mas que estão tão cansados que a única coisa que querem é uns minutinhos no sofá, vendo o Jornal Nacional. Vendo o mesmo Jabor falar porcarias mastigadas por Datena e Rezende. Ele não encontrou um suposto líder da frente de greve dos camelôs, cansado e suado, sentado no banco do metrô com um saco de mercadorias, sem uns quatro dentes da frente, falando pra mim que eu deveria lutar sim, que eu deveria ir pra rua sim, porque eu sou jovem e ele já está velho demais. 
Sinto muito, Jabor, mas a luta é minha.
A luta é minha e de todos os que sabem diferenciar o que é verdade e o que não é, o que é só pra gerar lucro e o que é pra gerar justiça. Se o proletariado não está incomodado com a mesma coisa que eu, isso prova que a lobotomia midiática da qual você faz parte está surtindo efeito. Então, sobra pra gente, classe média, estudante, dar a cara a tapa. Foi o que eu fiz. Eu e minha namorada. 

Chegando na Praça da República, demorou a perceber que eu não estava na Virada Cultural, e que todos aqueles milhares de helicópteros, sobrevoando como vespas o local, não estavam ali por acaso. Minha namorada comparou à música do Pink Floyd: "Parece que vai começar a tocar Another Brick in the Wall a qualquer momento!". Nos enfiltramos na multidão e começamos a entoar os hinos: "o povo acordou!", "vem pra rua, vem contra a tarifa, vem!".
Continuamos a gritar e cada vez que eu olhava pra trás, via mais gente se juntando pra gritar também. Era lindo. Confesso que me emocionei e os olhos marejaram, e não foi por causa do gás lacrimogênio. 
Eu estava muito orgulhoso de fazer parte daquilo, e ouvir tudo aquilo. O povo acordou mesmo. O negócio não era mais apenas por 20 centavos. Se tratava da gota d'água no copo do transporte público paulistano. Ninguém aguentava mais só ver subir a tarifa e tudo continuar igual. Transbordou.
Mas a onda foi cortada quando a polícia começou a barbarizar. Mais uma vez, o que era pra ser uma manifestação pacífica, foi covardemente repreendia por uniformes, cavalos, armas, bombas e escudos. Não posso dizer que os policiais estão errados. A entidade polícia está errada. Os governantes estão errados. Aquela história, do "general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na mão".
De certo, rola um abuso de poder dos invidíduos por trás da farda. Não dava pra confiar, mas também não é justo culpar o cara que, depois do expediente, também pega a mesma condução lotada pra voltar pra casa. Se eles também se tocassem disso, e não precisassem arriscar seu único emprego e o sustento de sua família, eles também adeririam à greve. Cães de caça famintos, comandados por um dono violento, acostumados a estraçalhar qualquer coisa que represente qualquer ameaça.
Virou um corre corre. As lojas fecharam. Ninguém dava cobertura. Era cada um por si. Lembrei da ditadura que meus pais viveram. Ninguém quer acobertar vagabundo manifestante e depois ter que se explicar pra polícia. Não tínhamos pra onde ir. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come.
Lembrei do vinagre. Lambuzamos camisetas e lenços e colocamos na cara. Fomos passando por ruas estreitas e vira e mexe tínhamos que desviar o percurso pra não entrar na rota da Rota. Nessa hora deu bastante medo.
Chegando na Consolação, parecia que tínhamos dispersado da multidão, quando ouvimos os gritos no quarteirão paralelo. Os helicópteros continuaram sobrevoando e o meio da rua virou campo de batalha. 

Viaturas a milhão e bombas caindo do céu nos empurraram cada vez mais pra longe do manifesto.Senti na pele a verdadeira repressão mascarada de democracia. Os holofotes dos helicópteros nos cegavam e aumentavam ainda mais a sensação de violência. "The Big Brother is watching you".
O caminho até a minha casa foi turbulento. Tivemos que contornar a região e arrumar um jeito de não passar perto da polícia. A essa hora, já estávamos cercados. Foi quando um colega me deu um toque sobre o vinagre: "eles estão prendendo quem tem vinagre porque alegam que dá pra fazer bomba com isso!". Como se fôssemos nós que estávamos jogando bombas.
Aliás, passar pela Avenida Paulista nesse momento era pedir pra tomar bomba na cabeça. Depois de jogar o vinagre fora, descobri que o tempero havia virado utensílio de luxo na batalha. Todo mundo procurava pra fugir do gás, e foi quando uma bomba caiu a pouquíssimos metros de mim, aparentemente arremessada do helicóptero, eu chorei.
Chorei porque nunca tinha sentido a capacidade de repressão de um poder que outrora se disse do povo. Chorei porque pensei que em algum momento eu teria que ligar para meus pais e avisar que estava na delegacia, detido por "formação de quadrilha". Chorei porque era um jogo injusto. Não tinha fair-play. O oponente estava equipado com escudos, capacetes, cacetetes, cavalos, bombas, helicópteros, muita munição, viaturas, motos e colete à prova de balas. Nós tínhamos apenas pernas pra correr. E ainda fomos chamados de vândalos. E ainda fomos culpados pela grande bagunça.
No final, eu só queria descansar, mas quando deitei na cama, o barulho dos helicópteros ainda ecoava na minha cabeça. Talvez minhas lágrimas tenham sido causadas apenas pela fumaça das bombas, mas o choro foi real. Talvez não precise mesmo chorar como uma criança pra me lamentar por alguma coisa. Eu escrevo. Meu lamento veio em forma de carta.

Um comentário:

  1. Lucas,
    ótimo texto. Eu também tive a mesma experiência que você. Lutamos e não passamos de meros terroristas.

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