Depois de uma tarde longa, de passeios bonitos, da
tranquilidade de Trindade e o Centro Histórico de Paraty, conversas sobre a
beleza dos sotaques novos, da arquitetura das ruas e da sujeira dos abutres, a
patinha suja das garças que voavam pelo cais, dos doces caseiros dos carrinhos,
de rir dos gringos tomando caipirinha e batucando as bossas novas já
ultrapassadas, anoiteceu e tivemos que seguir rumo à nossa casa.
Talita, a linda moça que eu conheci há uma semana e que já
se instalou em minha vida, com direito a escova de dente e chinelo, estava me
acariciando no carro, enquanto ouvíamos Adriana Calcanhoto e nos locomovíamos
pela rodovia, quando percebemos o peso da noite.
Um gato, jogado no meio da pista, brilhou os olhos,
refletindo a luz da lanterna do meu carro. Parecia estar morto. Evitei mostrar,
mas Talita viu, e então parei no acostamento e ela foi tirá-lo do caminho.
O felino ainda estava quente, e como se num estalo
resolvemos levá-lo a algum veterinário para ver se dava para salvá-lo. Ela
pegou o animal nos braços e entrou no carro. Seguimos viagem costurando o
trânsito, de maneira imprudente, mas apropriada para a ocasião.
A distância era de uns doze quilômetros até a clínica mais
próxima e sentimos que o gato não ia resistir, mas mesmo assim tentamos. Pra
falar a verdade, a iniciativa de levá-lo foi dela. Se fosse eu, teria apenas o
tirado da pista para não fazer pastel de gato.
Chegamos à clínica e tocamos a campainha. O veterinário foi
atencioso e pediu desculpas pelo traje casual (bermuda e camiseta, descalço).
Pegou o bichano e colocou na mesa de operação. Tarde demais. O bichinho já
estava morto.
Agradecemos a atenção e fomos embora, chateados por não
termos chegado a tempo para salvá-lo, mas com a sensação de dever cumprido.
Rodamos por mais uns dez quilômetros, com tempo suficiente
pra desencanar do gato, quando vimos mais uma cena pesada. Primeiro, estilhaços
de vidro no asfalto, depois uma pessoa jogada no acostamento, parecendo estar
morta. Meus instintos disseram “pô, tirei um gato da pista e vou ignorar esta
pessoa?”. Mas não sabia o que fazer, fiquei assustado. Parei no acostamento
novamente e perguntei a opinião de Talita, minha heroína pessoal.
Ela também não sabia como agir, então ligamos para a
emergência enquanto voltávamos para averiguar se a pessoa estava realmente
morta ou não. Enquanto Talita passava as coordenadas para a atendente,
percebemos que a pessoa estava andando, com dificuldade, mas andando.
Talita desligou o telefone e perguntou para a pessoa (era um
homem) se ele precisava de ajuda. Ele disse “preciso!” com uma propriedade
assustadora, mas parecendo estar ciente do que dizia. Logo, parei o carro mais
a frente e descemos. Fomos andando em direção ao homem macabro.
A noite estava mais escura do que eu pensava, de modo que só
dava pra ver alguma coisa quando algum carro passava. Chegamos perto e o homem
teve um ataque de fúria e começou a quebrar as coisas que carregava. Ele
gritava e gesticulava, mas eu não via. Talita agarrou na minha mão e eu
coloquei-a atrás de mim e disse “oi”.
Outro carro passou e eu percebi que o homem estava nu. Foi
quando ele gritou “EM QUÊ VOCÊ PODE ME AJUDAR? EM QUÊ?”
A hostilidade dele me assustou um pouco, e percebi que só
estava atrapalhando o homem. Voltamos com pressa e com medo dele nos atacar,
entramos no carro e fomos embora.
Dirigi com medo, lembrando da silhueta do homem em fúria.
Sua dicção me lembrou a do meu melhor amigo, Henrique. Seu ataque nu me lembrou
dum problema de família, relacionado à esquizofrenia e cocaína. Sua aparência
me lembrou Jorge, amigo de Brás, em Daytripper.
A ocasião só me fez pensar no quanto somos impotentes sobre
a vida alheia. Da mesma maneira que não podemos ressuscitar um gato, não
podemos ressuscitar um homem. Aquele corpo estava andando pela estrada, e
estava morto. Assustadoramente verdadeira, a vida nos dá patadas de realidade,
cada vez que escurece e saímos pelas estradas escuras, querendo apenas um
repouso.
A pergunta que ficou é justamente a que o homem louco fez, e
que ficou rodando na minha cabeça durante um bom tempo: “EM QUÊ VOCÊ PODE ME
AJUDAR?”