terça-feira, 16 de outubro de 2012

O gato ou o homem?


Depois de uma tarde longa, de passeios bonitos, da tranquilidade de Trindade e o Centro Histórico de Paraty, conversas sobre a beleza dos sotaques novos, da arquitetura das ruas e da sujeira dos abutres, a patinha suja das garças que voavam pelo cais, dos doces caseiros dos carrinhos, de rir dos gringos tomando caipirinha e batucando as bossas novas já ultrapassadas, anoiteceu e tivemos que seguir rumo à nossa casa.
Talita, a linda moça que eu conheci há uma semana e que já se instalou em minha vida, com direito a escova de dente e chinelo, estava me acariciando no carro, enquanto ouvíamos Adriana Calcanhoto e nos locomovíamos pela rodovia, quando percebemos o peso da noite.
Um gato, jogado no meio da pista, brilhou os olhos, refletindo a luz da lanterna do meu carro. Parecia estar morto. Evitei mostrar, mas Talita viu, e então parei no acostamento e ela foi tirá-lo do caminho.
O felino ainda estava quente, e como se num estalo resolvemos levá-lo a algum veterinário para ver se dava para salvá-lo. Ela pegou o animal nos braços e entrou no carro. Seguimos viagem costurando o trânsito, de maneira imprudente, mas apropriada para a ocasião.
A distância era de uns doze quilômetros até a clínica mais próxima e sentimos que o gato não ia resistir, mas mesmo assim tentamos. Pra falar a verdade, a iniciativa de levá-lo foi dela. Se fosse eu, teria apenas o tirado da pista para não fazer pastel de gato.
Chegamos à clínica e tocamos a campainha. O veterinário foi atencioso e pediu desculpas pelo traje casual (bermuda e camiseta, descalço). Pegou o bichano e colocou na mesa de operação. Tarde demais. O bichinho já estava morto.
Agradecemos a atenção e fomos embora, chateados por não termos chegado a tempo para salvá-lo, mas com a sensação de dever cumprido.
Rodamos por mais uns dez quilômetros, com tempo suficiente pra desencanar do gato, quando vimos mais uma cena pesada. Primeiro, estilhaços de vidro no asfalto, depois uma pessoa jogada no acostamento, parecendo estar morta. Meus instintos disseram “pô, tirei um gato da pista e vou ignorar esta pessoa?”. Mas não sabia o que fazer, fiquei assustado. Parei no acostamento novamente e perguntei a opinião de Talita, minha heroína pessoal.
Ela também não sabia como agir, então ligamos para a emergência enquanto voltávamos para averiguar se a pessoa estava realmente morta ou não. Enquanto Talita passava as coordenadas para a atendente, percebemos que a pessoa estava andando, com dificuldade, mas andando.
Talita desligou o telefone e perguntou para a pessoa (era um homem) se ele precisava de ajuda. Ele disse “preciso!” com uma propriedade assustadora, mas parecendo estar ciente do que dizia. Logo, parei o carro mais a frente e descemos. Fomos andando em direção ao homem macabro.
A noite estava mais escura do que eu pensava, de modo que só dava pra ver alguma coisa quando algum carro passava. Chegamos perto e o homem teve um ataque de fúria e começou a quebrar as coisas que carregava. Ele gritava e gesticulava, mas eu não via. Talita agarrou na minha mão e eu coloquei-a atrás de mim e disse “oi”.
Outro carro passou e eu percebi que o homem estava nu. Foi quando ele gritou “EM QUÊ VOCÊ PODE ME AJUDAR? EM QUÊ?”
A hostilidade dele me assustou um pouco, e percebi que só estava atrapalhando o homem. Voltamos com pressa e com medo dele nos atacar, entramos no carro e fomos embora.
Dirigi com medo, lembrando da silhueta do homem em fúria. Sua dicção me lembrou a do meu melhor amigo, Henrique. Seu ataque nu me lembrou dum problema de família, relacionado à esquizofrenia e cocaína. Sua aparência me lembrou Jorge, amigo de Brás, em Daytripper.
A ocasião só me fez pensar no quanto somos impotentes sobre a vida alheia. Da mesma maneira que não podemos ressuscitar um gato, não podemos ressuscitar um homem. Aquele corpo estava andando pela estrada, e estava morto. Assustadoramente verdadeira, a vida nos dá patadas de realidade, cada vez que escurece e saímos pelas estradas escuras, querendo apenas um repouso.
A pergunta que ficou é justamente a que o homem louco fez, e que ficou rodando na minha cabeça durante um bom tempo: “EM QUÊ VOCÊ PODE ME AJUDAR?”

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Coloco mais um prato em cima do criado mudo e acabo o suco de maracujá na esperança de dormir melhor, mas sei que os bons sonhos que eu terei serão, novamente, baseados nela.
Me peguei pensando em duas coisas que mais me marcaram nesses últimos dias: a terra do meu chão, desde o piso de tacos que povoa meus pensamentos, até a pedra mais alta da Chapada Diamantina.
Preciso andar novos caminhos, descobrir novas terras, sentir novos grãos, areia, pó.
Me lembro também daqueles cabelos revoltos que combinavam com a luz vermelha que entrava pela porta da varanda. Seus lençóis brancos retorcidos pelo movimento de nossos corpos e o desejo de não querer nunca mais sair dali.
Instalaria uma rede naquela varanda. Uma rede especial, pra dormir a dois.Se bem que uma rede individual estabelece a necessidade de se enroscar. E bem que eu gostaria de voltar a me enroscar naquele corpo pequeno e ruivo.
Faria o café, se conseguisse acordar mais cedo. Trocaria a lâmpada e o resistor do chuveiro, se fosse necessário. Colocaria o varão da cortina. Tudo pra ver brilhar aquele sol dentro do quarto novamente, e sair limpando o chão de tacos com nossas roupas.
Mas ao mesmo tempo, queria jogá-la dentro do automóvel e sair rasgando o chão, erguendo o véu de poeira citado nas canções, subindo montanhas e sentindo o vento batendo no rosto.
E voltar a ser o garotinho que observava maravilhado os mini-tufões que o vento causava com o pó de sua rua de terra, nos dias quentes de verão. Que sempre gostou de sentir o que não se pode ver, mas se sabe que está lá.