sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Carpinteiro do Universo

Acordou meio lento. Mas o dia tava bonito. Abriu a porta da varanda e encarou o dia. Se espreguiçou caminhando em direção ao banheiro. Seu pé aderia ao chão do jeito que só um chão limpo poderia proporcionar. Havia optado por cuidar mais da limpeza da casa depois que encontrou um carrapato em sua coxa. Colheu os resultados da faxina durante a caminhada. Podia sentir os tacos de madeira do piso.

Lavou o rosto, vestiu uma bermuda e levou o cachorro pra passear. Sem problemas. O canino cagou no pé da árvore da rua de cima. Ele recolheu usando um saquinho branco. O saquinho que guardou três brigadeiros, que ele comeu com sua namorada nas três últimas noites, depois de assistir The Big Lebowski.

Carregou a merda do cachorro até a lixeira em frente à sua casa. "Que vida hein sacola? Ontem brigadeiro, hoje bosta." Em casa, pegou uma garrafa de suco de laranja pasteurizado e se serviu. Conversou com sua namorada pela internet. Ela estava no trabalho. Ele lembrava dela dando um beijo de tchau horas antes, e ele respondia que também a amava. Era quase um sonho. Ele estava muito sonolento.

O dia foi todo assim, sentado, tentando começar uma tarefa e falhando. Se masturbou duas vezes. A janela estava aberta e ele teve receio de ser visto com a mão na massa. Alguém de uma janela a sudoeste tem ampla visão de seu pênis pelo lado esquerdo, caso olhe do canto direito inferior da janelinha do banheiro - ele é canhoto.

Às quatro e vinte da tarde, resolveu tirar as tralhas da varanda, para a casa ter mais um cômodo. Sua namorada ia gostar. Recolheu as roupas do varal e livrou espaço. Se deparou com plataformas de madeira que eles usavam como sofá, quando apoiavam algumas almofadas por cima. Agora eram só plataformas de madeira, criando mofo, encostadas no canto da varanda. Eles pensaram em se desfazer delas, mas ele tinha uma ideia melhor.

Escolheu a dedo o som. Um dos discos novos, que haviam comprado na última feira. Desceu a agulha e os chiados começaram. Um rockabilly característico. Era uma carta saudosista para o futuro.
Deu uns tragos e uns passinhos. "Oxalá, Oxum, Dendê, Oxóssi de não sei o quê".

Apoiou a plataforma sobre um caixote e avaliou seu estado. Muito mofo. Rasgou um pedaço de lixa de madeira e começou o trabalho. Lixando a madeira e observando os folículos do fungo se misturando com o ar. A cada golpe, percebia um misto de oxigênio, madeira e as moléculas tóxicas daquele ser vivo estranho flutuando no ar, em direção aos céu.

O cão parou ao seu lado como faria o Chaves, assistindo Seu Madruga assoviar "Carpinteiro do Universo" e lixar as tábuas do palco do Festival da Boa Vizinhança. O cão perguntou: "o que você está fazendo?". Seu Madruga  respondeu: "saia daqui! Essas esporas de mofo são perigosas e podem ficar grudadas em seu pulmão, entoxicando seu corpo e te matando em questão de minutos!".

O cão foi embora enquanto ele ria da própria piada. Na vitrola, tocava um som mais denso. "O hoje é apenas um furo no futuro, por onde o passado começa a jorrar".A carta pro futuro de novo. Mas dessa vez era quase um testamento. Imaginou o pó que subia indo direto às suas narinas. Levantou para virar o disco.

Voltou e sentiu um ligeiro medo do que estava fazendo, inalando aquela espessa carga de mofo. Mas continuou mesmo assim, descontando na tábua a culpa de estar se suicidando com a melhor das intenções.
Novamente, cada golpe levantava o pó, e ele imaginava a cena de uma guerra civil em câmera lenta, onde o Estado era seu braço libertando o povo mofado, que em contra-golpe invadia seus pulmões e arrancava seus fios da tomada e destruia todos os computadores do sistema nervoso central.

Com metade da capacidade de processamento de dados, ele sentiu sede. O copo em cima da penteadeira estava vazio. Suas mãos tremiam. Foi até o banheiro e se olhou no espelho. Estava saudável. Lavou o rosto uma vez. Sentiu a água gelada batendo em sua cara e escorrendo pelos fios do bigode.

A vitrola disse: "eu ando de passo leve pra não acordar o dia, sou da noite a companheira mais fiel que ela queria", enquanto ele tombava como a estátua de um ditador cruel, durante a cena final de um jogo pós apocalíptico.