sábado, 22 de junho de 2013

Ninho/Gaiola

Estava jogando um Tetris genérico no emulador de Mega Drive do Playstation 3 e ouvindo Pearl Jam, com o pé apoiado no Vera Fischer (um puff branco, antigo, de um tecido muito esticado e envernizado e que pode ocupar qualquer espaço na sala) quando olhou pro celular. Sete e meia. Porra! Ela disse que, logo que saísse da terapia, ligava pra ele para encontrarem-se prum lanche e cineminha. Coisa pouca. Esse clima de protesto todo dia não tá deixando eles terem um rolê maior que isso. Tempos de crise e muita confusão.
Levantou num salto, desligou o videogame e o rádio. Precisava tomar banho. Olhou na mesinha e viu a Trip desse mês, embalada no saquinho, inviolada. Ela havia deixado hoje de manhã para ele. Precisava também levar o cachorro pra passear, deixar um pouco de ração no pote e juntar os filmes para devolver na locadora. Tudo hoje. Tudo agora.
Resolveu que cortar o invólucro da revista era o melhor a se fazer primeiro, afinal, tinha mulheres nuas ali, além de entrevistas com pautas sempre pertinentes. Era sua revista preferida. Jogou o plástico no lixo da cozinha e no caminho viu um bilhete com os afazeres de casa colado com um ímã na geladeira. Tinha a letra dela. Era linda.
Voltou à sala e separou os filmes a entregar. Não viram menhum dos dois. Pareciam bem chatos, do tipo de humor inteligente demais pra ser engraçado, mas poderiam ser bons atrativos. De qualquer forma, foi ela que escolheu, até porque a atendente estava muito enfática com os dois.
Colocou os filmes no saquinho de papel, dobrou e colocou-o em cima da mesa, ao lado da revista, que dessa vez, estava em outra posição, caso ela perguntasse se ele havia lido. Responderia a verdade: "dei uma folheada". Talvez ela olhasse para ele com uma cara de "eu sei que foi na parte de nudez, seu bobo", e ele respondesse um "que foi?" tentando se passar por inocente.
Subiu as escadas e foi tirando a roupa. Jogou tudo junto no canto do banheiro, onde se acumulava uma pilha de roupas pretas. O cesto estava cheio. Pelado, foi enfiando a mão nas roupas e procurando mais peças pretas pra unir à pilha.
Juntou o suficiente e deixou lá, pra quando descesse. Abriu o chuveiro. Enquanto a água aquecia, voltou pra fechar a porta. Molhou o chão. Fechou a porta.
No banho, começou a pensar em que roupa vestir. Sua camiseta do Led Zeppelin já estava suja, e a calça era a mesma, desde a fuga das balas de borracha da quinta feira. Verdadeiro protesto aquele, causou terror, mostrou pro governador que o povo mandava. Quem diria que uma semana depois ia virar esse carnaval fora de época, de vagabundas tirando foto com o celular: "quero que apareça mais a bandeira. Vamos à luta!" Bando de idiotas, apoiando fascistas que planejam um golpe.
Sua cabeça deu um nó, bateu paranoia e ele resolveu não pensar mais naquilo. Pra onde iriam viajar nas férias? Ela disse que tinha milhas pra ir pra qualquer lugar barato, de avião. Pensou em ir para a Patagônia.
Saiu do banho, se secou e colocou uma calça exatamente igual à do protesto. Só era mais apertada, porque era muito velha e ele havia engordado. Colocou a camiseta do Raul Seixas e um Vans sem cadarço marrom.
Desceu as escadas e esqueceu a pilha de roupa lá no banheiro. Depois pegava. Travou a coleira do cachorro e resgatou um saquinho de lixo.
Na rua, fez a via sacra. De poste em poste com o cão, até passar por uma janela aberta. Do primeiro andar, um grupinho jovem se formava e um cheiro de maconha tombava na calçada. Tombava e caía em seus braços. A dele havia acabado. Precisava falar com Aninha pra arrumar mais.
Deu a volta no quarteirão e o cachorro cagou em uma árvore. Ficou feliz por não ter que recolher a merda do cão, porque já estava tarde para as velhas e os jardineiros chatos reclamarem do cheiro. E lá tem merda muito maior.
Entrou em casa novamente. Percebeu que esqueceu o celular, e ela poderia ter ligado. Nenhuma ligação perdida. Foi até a cozinha e colocou mais ração pro cachorro.
O celular tocou. Era ela. Estava chegando. Justo quando ele sentou pra escrever o que tinha lembrado! Ela estava chegando na estação de metrô próxima à sua casa, onde se encontrariam.
Dobrou a esquina e viu a banca de jornais. Tinha que comprar A Arte da Guerra. Pedro havia lhe dito sobre esse livro. Sempre tem nessas bancas da região, aqueles pocket books. Baratos e portáteis. Informação de bolso é sempre bom em tempos de crise.
Quando ele encontrou os olhos dela, lembrou imediatamente daqueles cabelos ruivos e encaracolados esvoaçantes, com um sorriso meigo e confiante.
Deu-lhe oi e um beijo na boca. Ele guardou o celular e retribuiu.
Foram conversando no metrô até a estação Trianon-Masp, onde desembarcaram e caminharam até o Burger King mais próximo:
- tá rolando alguma coisa no MASP hoje?
- parece que é outra manifestação.
- esses babacas não entendem mesmo, acham que isso é micareta... já é aqui o Burger King? Pensei que fosse mais longe.
- não, é pertinho, cê viu?
Enquanto ele pedia um whooper com batata média para ela e um stacker quádruplo com batata grande e onion rings extras pra ele, ela foi ao banheiro. Depois escolheram uma mesa e, durante a refeição, ele quase teve um orgasmo ao comer tão prazerosa refeição:
- isso sim é junkie food!
Depois da comida, perceberam que estava realmente rolando um protesto ali, contra a Cura Gay, uma proposta de um deputado babaca que pretende curar a viadagem com psicólogos. Aí a bicharada toda foi pra rua protestar.
Todos os cartazes eram muito criativos. Tão criativos que ela quis ficar. Estava se divertindo. Ele aceitou, porque estava com preguiça de caminhar até o cinema. Apoiava a causa também. Viadagem não é doença.
Talvez por conta da velocidade em que os hambúrgueres desceram ao estômago dele e também por causa das porcarias na composição daquilo, sua barriga começou a doer. Muito. Incontrolavelmente ele quis cagar. Cagar muito. Não conseguia andar direito. Então ela disse para ele correr para o barzinho da esquina.
Ele focou a porta do banheiro, que dava pra ver da rua e seguiu em linha reta. Quando entrou, maravilha: o banheiro tinha tranca e papel higiênico. Mas era muito apertado. Sentou no vaso, começou a suar. Suas pernas não cabiam no box. Sua barriga continuava comprimida. As pessoas batiam na porta e comentavam. Ele já estava lá há muito tempo. Ele só tentava imaginar um jeito de ajoelhar no chão para vomitar, mas não fazer isso com a cara na privada cheia de merda. Também não podia vomitar na pia, porque ia entupir tudo. Ele havia virado um regador automático, só que ao invés de água, era comida ligeiramente digerida, e ao invés de um gramado, era um banheiro de 1 metro quadrado.
Quando ele saiu, parecia mais calmo. Menos suado, ele disse que continuaria ali sem problemas. O mal estar não atrapalhou a noite.
Quando voltaram para casa, vibraram pela erva conseguida na rua, durante o rolê. Ele prontamente dichavou o verde enquanto ela via coisas no computador. Outras pessoas estavam na sala e eles conversavam muito.
Ele bolou o negócio e deu uma pitada. Em seguida ofereceu para ela. Ela puxou e segurou. Todos foram dormir enquanto os dois ficaram na sala. Pensou em desligar o videogame e levá-la para o quarto. Voltou ao Tetris genérico, com o pé na Vera Fischer. Ela quis tentar algumas vezes.
Ele colocou Pearl Jam pra tocar e continuou jogando, até perceber, lá pela terceira ou quarta música, que ela dormia pesado com a cabeça apoiada no sofá. Ele estava chapado, e o jogo parecia bem interessante. Depois de algum tempo, algo parecido com uma hora ou duas, enjoou.
Levantou, trocou a trilha sonora. Pink Floyd. Que ela havia apresentado a ele. Pegou uma lata de cerveja na geladeira e cortou pacientemente o salame em rodelas.
Levou tudo para a sala e colocou um filme de ação na tv. Qualquer filme. Era só pra servir de companhia enquanto ele relatava sobre como é a noite de sexta feira de alguém que está exatamente onde queria estar. Deixou-a dormir no sofá e, de tempos em tempos, observava o sono profundo dela, apaixonado.
Não sabia dizer se estava realizando um objetivo, de ter uma vida boa de casado com uma moça linda e compreensiva, ou se era um cara sortudo por dormir toda noite com a garota dos seus sonhos.


sexta-feira, 14 de junho de 2013

Estive na revolução e lembrei-me de você

Ontem saí de casa cedo. Não trabalho, então pude me preparar. No facebook, vi que só se falava sobre um assunto: a manifestação. "Quem vai, vai. Quem não vai, fica". Gente compartilhando fotos do protesto, gente compartilhando entrevistas nojentas de grandes veículos midiáticos, gente compartilhando editoriais e artigos tão ridículos que eu me perguntei até onde o dinheiro fala mais alto a ponto de você, um grande formador de opinião, e sua coluna no jornal da noite da maior emissora do país, subverter todo o conceito. Eu sabia que isso acontecia, mas nunca tinha visto com meus próprios olhos.
Resolvi arriscar. Todo esse papo de protesto, violência policial e suposto vandalismo era bem real nos meus jogos de videogame, minhas músicas e nos meus filmes preferidos. Mas eu nunca tinha ido pra rua, bater panela contra uma coisa que viola os meus direitos. Se Arnaldo Jabor me conhecesse, teria me julgado: "Moleque de classe média não tem direito de protestar!"
Mais um motivo pra eu não poder sair na rua, é que eu coloquei em minha mochila uma garrafa de vinagre. Fui espertinho. Li sobre os efeitos do gás lacrimogênio e como o vinagre poderia ajudar nesses casos. Enfim, bem preparado, fui encontrar minha namorada no bairro do Itaim, onde ela trabalha, pra irmos juntos até o Theatro Municipal, onde o manifesto se organizaria.
Pra piorar minha imagem com o Jabor, eu nunca tinha andado de ônibus em São Paulo. Faz oito meses que eu moro nessa cidade e só andei de metrô. Não por opção, mas sim porque nunca precisei. Ai se o jornalista soubesse disso: "peraí, você é um playboyzinho em seu sabático, que foi buscar a namorada no Itaim, pra protestar contra 20 centavinhos de um ônibus que você nem usa normalmente? quem devia protestar contra isso é a população pobre, o proletariado, o favelado que precisa de seis conduções pra ir e voltar do trabalho, e não você, vagabundo que mora na Vila Mariana."
Mas Jabor não deve ter conhecido os operários que foram meus colegas há algum tempo atrás, que nem são tão pobres assim, mas que estão tão cansados que a única coisa que querem é uns minutinhos no sofá, vendo o Jornal Nacional. Vendo o mesmo Jabor falar porcarias mastigadas por Datena e Rezende. Ele não encontrou um suposto líder da frente de greve dos camelôs, cansado e suado, sentado no banco do metrô com um saco de mercadorias, sem uns quatro dentes da frente, falando pra mim que eu deveria lutar sim, que eu deveria ir pra rua sim, porque eu sou jovem e ele já está velho demais. 
Sinto muito, Jabor, mas a luta é minha.
A luta é minha e de todos os que sabem diferenciar o que é verdade e o que não é, o que é só pra gerar lucro e o que é pra gerar justiça. Se o proletariado não está incomodado com a mesma coisa que eu, isso prova que a lobotomia midiática da qual você faz parte está surtindo efeito. Então, sobra pra gente, classe média, estudante, dar a cara a tapa. Foi o que eu fiz. Eu e minha namorada. 

Chegando na Praça da República, demorou a perceber que eu não estava na Virada Cultural, e que todos aqueles milhares de helicópteros, sobrevoando como vespas o local, não estavam ali por acaso. Minha namorada comparou à música do Pink Floyd: "Parece que vai começar a tocar Another Brick in the Wall a qualquer momento!". Nos enfiltramos na multidão e começamos a entoar os hinos: "o povo acordou!", "vem pra rua, vem contra a tarifa, vem!".
Continuamos a gritar e cada vez que eu olhava pra trás, via mais gente se juntando pra gritar também. Era lindo. Confesso que me emocionei e os olhos marejaram, e não foi por causa do gás lacrimogênio. 
Eu estava muito orgulhoso de fazer parte daquilo, e ouvir tudo aquilo. O povo acordou mesmo. O negócio não era mais apenas por 20 centavos. Se tratava da gota d'água no copo do transporte público paulistano. Ninguém aguentava mais só ver subir a tarifa e tudo continuar igual. Transbordou.
Mas a onda foi cortada quando a polícia começou a barbarizar. Mais uma vez, o que era pra ser uma manifestação pacífica, foi covardemente repreendia por uniformes, cavalos, armas, bombas e escudos. Não posso dizer que os policiais estão errados. A entidade polícia está errada. Os governantes estão errados. Aquela história, do "general de dez estrelas que fica atrás da mesa com o cu na mão".
De certo, rola um abuso de poder dos invidíduos por trás da farda. Não dava pra confiar, mas também não é justo culpar o cara que, depois do expediente, também pega a mesma condução lotada pra voltar pra casa. Se eles também se tocassem disso, e não precisassem arriscar seu único emprego e o sustento de sua família, eles também adeririam à greve. Cães de caça famintos, comandados por um dono violento, acostumados a estraçalhar qualquer coisa que represente qualquer ameaça.
Virou um corre corre. As lojas fecharam. Ninguém dava cobertura. Era cada um por si. Lembrei da ditadura que meus pais viveram. Ninguém quer acobertar vagabundo manifestante e depois ter que se explicar pra polícia. Não tínhamos pra onde ir. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come.
Lembrei do vinagre. Lambuzamos camisetas e lenços e colocamos na cara. Fomos passando por ruas estreitas e vira e mexe tínhamos que desviar o percurso pra não entrar na rota da Rota. Nessa hora deu bastante medo.
Chegando na Consolação, parecia que tínhamos dispersado da multidão, quando ouvimos os gritos no quarteirão paralelo. Os helicópteros continuaram sobrevoando e o meio da rua virou campo de batalha. 

Viaturas a milhão e bombas caindo do céu nos empurraram cada vez mais pra longe do manifesto.Senti na pele a verdadeira repressão mascarada de democracia. Os holofotes dos helicópteros nos cegavam e aumentavam ainda mais a sensação de violência. "The Big Brother is watching you".
O caminho até a minha casa foi turbulento. Tivemos que contornar a região e arrumar um jeito de não passar perto da polícia. A essa hora, já estávamos cercados. Foi quando um colega me deu um toque sobre o vinagre: "eles estão prendendo quem tem vinagre porque alegam que dá pra fazer bomba com isso!". Como se fôssemos nós que estávamos jogando bombas.
Aliás, passar pela Avenida Paulista nesse momento era pedir pra tomar bomba na cabeça. Depois de jogar o vinagre fora, descobri que o tempero havia virado utensílio de luxo na batalha. Todo mundo procurava pra fugir do gás, e foi quando uma bomba caiu a pouquíssimos metros de mim, aparentemente arremessada do helicóptero, eu chorei.
Chorei porque nunca tinha sentido a capacidade de repressão de um poder que outrora se disse do povo. Chorei porque pensei que em algum momento eu teria que ligar para meus pais e avisar que estava na delegacia, detido por "formação de quadrilha". Chorei porque era um jogo injusto. Não tinha fair-play. O oponente estava equipado com escudos, capacetes, cacetetes, cavalos, bombas, helicópteros, muita munição, viaturas, motos e colete à prova de balas. Nós tínhamos apenas pernas pra correr. E ainda fomos chamados de vândalos. E ainda fomos culpados pela grande bagunça.
No final, eu só queria descansar, mas quando deitei na cama, o barulho dos helicópteros ainda ecoava na minha cabeça. Talvez minhas lágrimas tenham sido causadas apenas pela fumaça das bombas, mas o choro foi real. Talvez não precise mesmo chorar como uma criança pra me lamentar por alguma coisa. Eu escrevo. Meu lamento veio em forma de carta.