terça-feira, 27 de outubro de 2015

O Fone Phillips

- Curioso doutor, em minha última visita, lembro que falei sobre a saudade de casa. Muito tempo se passou. Muita coisa aconteceu. Coisas que eu não tenho muita lembrança, não sei por que motivo. Esse espaço costumava servir para que eu desabafasse de modo ligeiramente poético. Eu achava bonito. E confundi isso com uma vocação. Fui tentar a vida escrevendo e falhei...
- Falhou? Seus serviços de jornalista ainda são requisitados.
- Você chama isso de jornalismo? Não há notícia quando um cachorro morde uma pessoa. É quando a pessoa morde o cachorro que a notícia existe. O mesmo vale para os entusiastas da arte que passam a vida almejando um um espaço nesta concorrida panelinha de pressão que eu me meti.
- Mesmo assim, sua opinião ainda importa para eles.
- Mas eu sou um farsante, doutor. Eu não entendo nada do que eles falam, Eu apenas sorrio e faço piadas até que venha o próximo assunto.
- Você sabe que isso não é verdade. Mas vamos voltar para a saudade de casa, porque você sempre emenda um assunto no outro e não acaba nenhum.
- Tá certo. Eu tinha saudades de casa. Bom, ainda tenho. Mas o mais estranho é que estou em casa agora, e continuo sentindo.
- Talvez seja porque houve uma mudança de local enquanto você estava fora,
- Sim, e eu perdi meu quarto também. Sinto muita falta do meu quarto. Um espaço só meu onde eu pudesse me enclausurar.
- Será que hoje você não estaria mais depressivo se estivesse naquele buraco cheio de mofo e uma janela que dá pra um muro?
- Muito provavelmente. E ainda estaria tentando arrumar um jeito de me livrar da culpa. Essa culpa toda é muito pesada, doutor.
- E você sabe de onde ela vem, Lucas?
- Não.
- Eu menos.
- Do cristianismo, talvez?
- HAHAHA, boa piada.
- Por exemplo, doutor. Perdi meu fone de ouvido esses dias. Era um fonezinho daqueles Phillips, que custa vintão, mas que te faz economizar no longo prazo, porque dura mais que os de cinco reais que vende na estação de trem. E eu sempre deixava ele junto com minha carteira e minhas chaves, porque só usava pra sair mesmo. Em casa eu gosto dos headphones, que tem mais resposta e deixam o som mais limpo. Faz diferença, doutor. Eu sou chato com essas coisas. Cê tem que ver como fica a voz do Milton com aquele que a Talita me deu...
- Você está desvirtuando o assunto de novo.
- Tem razão. Então, perdi o fone. Aí fui na loja de eletrônicos e comprei outro. Paguei 16, achei bom, quatro reais fazem diferença, doutor, eu tô desempregado... Mas aí meu pai arrumou tudo em casa hoje e sei lá onde ele meteu meu fone Phillips. Agora tenho que ouvir música bem baixinho pra não acordar ninguém.
- E por que não usa o que a Talita te deu?
- Porque ele aperta minha cabeça quando fico muito tempo usando. O ponto é: se eu estivesse num lugar só meu, saberia exatamente onde guardei o fone Phillips.
- Mas será que você precisaria dele? Se estivesse sozinho, poderia ouvir a música que quisesse, no volume que quisesse, em tese.
- É, agora que falei me sinto um bobo por reclamar disso. Mas dá pra sacar a ironia dessa situação né? Relacionando com a saudade de casa e tal. 
- Naturalmente. Mas talvez não esteja com saudade de casa, e sim de si mesmo. O que fizeram com você, Lucas? Ou melhor: o que você fez consigo mesmo para ganhar a aprovação dos outros?
- Essa é uma boa pergunta.
- Sim. Talvez você devesse tentar se lembrar de quem você era antes de sentir falta de casa. Talvez seus pais possam te ajudar nisso. Volte quando tiver a resposta. Seu tempo comigo acabou por hoje.