quarta-feira, 8 de junho de 2016

Cotidiano



Quarta feira, 1:18 da manhã. Batatas fritas, esfirras e kibes do habibs esquentados no microondas, a quarta lata de Itaipava. Na TV um desenho qualquer imita um reality show para crianças. Estou descobrindo o primeiro EP do sonic youth. Queria ter como tirar uma foto que registrasse todo esse momento. Não tenho essa capacidade.
O que há de mais belo na pós-modernidade também é o que há de mais deprimente: a decadência da realidade. A vida real é ridícula de tão real. A realidade arde, queima, ferve, machuca.
O Brasil meteu 7 no Haiti. Palermas comemoraram como “o nosso 7x1”. “Demos o troco”, eles disseram. O Luciano Huck é o nosso brasileiro mais carismático. Ele comentou o jogo. Falou que quando foi ao Haiti, perdeu a esperança na humanidade. Eu queria ver a cara do Luciano Huck ao se deparar com meia dúzia de escombros de uma cidade em ruínas. Bem diferente de qualquer propaganda do Itaú.
Os haitianos enxergam os brasileiros como soldados fortemente armados. Os brasileiros enxergam os haitianos como imigrantes ilegais. Vendedores de relógios e fones de ouvido contrabandeados. O Brasil é a potência imperialista da América Latina. Fizemos tudo errado.
Eu ainda ouço que sou existencialista demais pra conviver com gente materialista. Como feministas radicais. Elas não tem tempo pra minhas conjecturas porque estão ocupadas tentando mudar o mundo pela raiz. Eu ainda acho que nada vai dar certo. Deus está morto?
Ofereço batata pro meu cachorro. Ele recusa, eu como. Vejo artistas no facebook. São artistas ou só tem dinheiro pra fumar maconha demais? A quarta lata acabou. Pego mais uma? As esfirras vão me dar azia, tenho certeza.
Esqueci de dizer. Um grande símbolo da luta burguesa contra a corrupção foi preso por contrabando. O japonês da federal. E pensar que a máscara com a cara dele estampada foi uma das mais vendidas no carnaval deste ano. Não quero pensar nisso. Rolo mais um pouco a timeline. Vejo a foto da Britney Spears sem calcinha saindo de um carro. A bucetinha depilada dela parece só uma racha qualquer. Uma dobra, como o meu sovaco.
Mas é excitante porque é a buceta da Britney Spears. Eu, um reles mortal, um plebeu, não estou autorizado a ver a buceta da Britney Spears. Mas eu olho mesmo assim. Um fotógrafo oportunista clicou o momento exato, jogou a foto na internet e me deu o passe livre. Imediatamente me sinto tão privilegiado que fico de pau duro. Não é a buceta que me excita, é a possibilidade. É poder. O poder é o grande combustível da humanidade.
Numa relação sexual, a camisinha bloqueia qualquer conexão sensorial via tato. Meu pau não sente nada. Eu sinto pelas mãos, pelo toque e, principalmente, pela relação de poder. Se minha mulher se abre e se entrega para mim, eu a preencho e domino, me sinto poderoso, pleno e capaz, e gozo. Meu orgasmo não tem a ver com o sexo, com o atrito das terminações nervosas da minha glande com as terminações nervosas das paredes vaginais de minha mulher, mas com o quanto eu sou capaz de sentir prazer sendo opressor e do quanto ela pode se permitir sentir-se submissa. “Sou sua vadia” eu ouvi certa vez. Foi excitante. Imagino a Britney Spears me falando isso abrindo as pernas no banco de trás de um carro e me pedindo pra fodê-la com força e no pêlo, e pronto, já estou com a mão na massa.
Sexo com amor é outra história. Confiança. Troca de carinhos, induções. Toque sem pretensão. Vamos ver no que vai dar, e quando vê tá lá, dentro, sentindo cada milímetro como uma corrente elétrica de baixa voltagem. Pequenas cargas de orgasmo, suspiros. Não encoste em mim por alguns segundos, mas pode me abraçar. Por que no fim eu sempre acabo caindo nesse assunto? Abro outra cerveja? Não, melhor caçar um doce de sobremesa.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Papel de Homem

Um dia eu estava bêbado numa festa e me senti na obrigação de contar a um amigo meu que já tinha transado com a garota que ele é apaixonado. Foi uma vez, sexo sem importância, depois de beber pra caralho. "Eu não pude evitar!", eu disse, enquanto ele dava tragadas constantes em seu cigarro. Eu não queria deixar esse segredo me corroer por mais tempo. Eu gostava muito dos dois e amava vê-los juntos e felizes, e não queria que esta memória fosse uma mancha permanente na imagem que eu tinha deles.
Ele me cumprimentou, me abraçou e respondeu "você foi macho". Eu encarei esta resposta como um elogio, um sinônimo de 'corajoso' ou 'honesto'. Achei que tivesse cumprido meu papel de homem de deixar tudo a panos limpos. Ledo engano.
Minutos se passaram até ela chegar em mim, em prantos, me indagando com veemência o motivo de eu ter contado aquilo pra ele. "Você não sabe tudo que eu estou passando, você não tem ideia do que você me causou", ela me disse. Eu realmente não tinha ideia. Quando tentei explicar pra ela o motivo de eu querer esclarecer as coisas com ele, foi pra mim que as coisas ficaram claras. "Coisa de homem" eu falei, "eu precisava contar porque ele é meu amigo e somos homens". Moisés, o Antigo Testamento, as Leis de Deus, o velho papo machista do nono mandamento: Não desejarás a mulher do próximo.
Quando ela foi embora chorando, eu entendi porque fui macho. Mais do que isso, nunca desejei tanto nunca ter sido macho. Meu mundo desabou. As luzes apagaram, a música parou, o bar fechou. Paguei a conta mais cara da minha vida.
Ontem vi um monte de gente compartilhando a notícia de um estupro coletivo, onde mais de trinta homens abusaram sexualmente de uma garota desacordada, fizeram vídeos e fotos e postaram na internet. Mais que mulheres indignadas, eu vi caras esquivando de ataques dizendo que nem todos os homens são escrotos a ponto de cometer uma barbaridade dessas. Mas será que o cara que compartilhou o vídeo dizendo que "amassaram a mina kkk" se sente um bárbaro escroto? Será que ele percebe seu grau de responsabilidade num ato desta magnitude?
Eu não percebi. Cumprindo meu ~papel de homem~ eu magoei uma mulher inocente que eu só quis tratar bem, respeitar, admirar, ter por perto e nunca, NUNCA magoar. Então, qual é o meu nível de estuprador em potencial por ter que cumprir este papel?

Se eu, do alto das minhas ~desconstruídas boas intenções~, ainda ajo através de retrógradas convenções sexistas para justificar meus atos irresponsáveis e deixar tranquila a minha consciência egoísta, quanto tempo todos nós, homens, tão orgulhosos de nossa macheza, vamos levar até parar de achar divertido (e até prazeroso) ignorar, diminuir, ofender, oprimir, agredir, machucar ou até mesmo matar um indivíduo apenas por ele ter uma construção genética diferente da nossa? E por que ainda acreditamos que temos que ser sempre os conquistadores, os invasores, os desbravadores que teimam em fincar bandeiras e demarcar territórios e posses sobre outros indivíduos?

Depois de anos traindo minha avó com uma menina 40 anos mais nova, meu avô foi descoberto pelos próprios filhos. Sem nenhuma vergonha, ele bateu na mesa dizendo ter cumprido seu papel de homem. Meu pai falou pra ele: “painho, o senhor foi macho pra tantas mulheres mas não foi pra uma só: a que fazia sua comida e lavava suas cuecas”. Então talvez ser macho não seja exatamente um elogio. Talvez a obrigação em cumprir nosso papel de homem só esteja nos levando pra um abismo sem fundo de falta de respeito e complacência, e as minas estejam certas em condenar TODOS os homens pelo erro bárbaro de trinta, porque enquanto continuarmos fazendo vista grossa pra atrocidades como esta, estaremos alimentando o monstro que vai devorar nossas irmãs, primas, filhas e netas.

domingo, 1 de maio de 2016

garota indie francesa que vende flores, eu queria parar de sonhar com você

eu queria parar de sonhar com você. porque eu sei que tudo isso não passa de uma paixão platônica que eu alimento indiretamente através da minha repulsa por você. sempre foi assim, desde quando a gente sentava lado a lado e eu sentia uma certa parceria vinda de você. eu me sentia confortável em responder no trabalho pra alguém parecido comigo.
lembro de dançar muito bem ao seu lado. lembro de como na minha cabeça a gente formava um bom par. e quando a gente sentava pra descansar ainda rolava um bom papo e boas risadas.ainda lembro daquela noite estranha no alberta em que colamos eu, você e seu atual namorado. na época todo mundo era solteiro. mesmo você sendo minha chefe, eu sinceramente achei que tinha alguma chance. e, ainda sinceramente, na minha cabeça machista parecia muito que você estava curtindo com nós dois pra ver quem agia primeiro.
eu fui buscar uma bebida e quando voltei vocês estavam se beijando. além da sensação infantil de ter sido jogado às traças, ainda tive que conviver com o fato de ser a única testemunha disso, e nesse caso, um cúmplice. o único cúmplice. me senti com 16 anos. o tempo passa, mas algumas coisas nunca mudam. deus sabe o quanto eu já pratiquei a famigerada autossabotagem.
depois disso você passou a se comportar diferente. em seu olhar eu via bem distante aquela garota que ria das minhas piadas, mas sua postura era sempre com um ar superior. isso me comeu a mente. quando a gente tinha reuniões de feedback você olhava pra mim com os mesmos olhos do alberta, das danças mas mantinha suas firmes decisões de "menos estilo, mais informação" e "ninguém se importa com você, lucas". palavras duras que só líderes natos - ou aspirantes - tem as manha de falar.
passei a renegar você porque tenho dificuldades em aceitar ordens. não elogiava mais o seu cabelo, não mostrava mais gifs de gatos, não fazia mais piadas com você. era só entregar o trabalho e usar muito fone de ouvido. a gente sentava lado a lado e raramente se falava pelo chat.
lembro quando fizemos as pazes, antes de eu sair de lá. foi algo meio de igual pra igual. ali eu percebi que sua postura de chefe era só pose mesmo, mas que você precisava manter porque estávamos num ambiente de trabalho, e você já tinha companhia garantida para a hora do almoço.
é claro que tudo que eu to falando é baseado nas minhas impressões, e eu posso estar redondamente enganado pelo seu cabelo maneiro e seu sotaque mineiro. é que ás vezes eu ainda me sinto com 16 anos.
hoje eu sonhei que você tinha uma banda e eu ia assistir o seu show. sua banda tinha um público cativo e você tinha uma puta presença de palco. usava um vestido preto e cantava com atitude. eu sempre paguei um pau pro seu cabelo tingido de loiro com a raiz aparecendo. agora você tá vivendo o sonho da garota indie francesa que vende flores. acho que você nunca mais vai voltar de Paris. eu só queria parar de sonhar com você.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O Fone Phillips

- Curioso doutor, em minha última visita, lembro que falei sobre a saudade de casa. Muito tempo se passou. Muita coisa aconteceu. Coisas que eu não tenho muita lembrança, não sei por que motivo. Esse espaço costumava servir para que eu desabafasse de modo ligeiramente poético. Eu achava bonito. E confundi isso com uma vocação. Fui tentar a vida escrevendo e falhei...
- Falhou? Seus serviços de jornalista ainda são requisitados.
- Você chama isso de jornalismo? Não há notícia quando um cachorro morde uma pessoa. É quando a pessoa morde o cachorro que a notícia existe. O mesmo vale para os entusiastas da arte que passam a vida almejando um um espaço nesta concorrida panelinha de pressão que eu me meti.
- Mesmo assim, sua opinião ainda importa para eles.
- Mas eu sou um farsante, doutor. Eu não entendo nada do que eles falam, Eu apenas sorrio e faço piadas até que venha o próximo assunto.
- Você sabe que isso não é verdade. Mas vamos voltar para a saudade de casa, porque você sempre emenda um assunto no outro e não acaba nenhum.
- Tá certo. Eu tinha saudades de casa. Bom, ainda tenho. Mas o mais estranho é que estou em casa agora, e continuo sentindo.
- Talvez seja porque houve uma mudança de local enquanto você estava fora,
- Sim, e eu perdi meu quarto também. Sinto muita falta do meu quarto. Um espaço só meu onde eu pudesse me enclausurar.
- Será que hoje você não estaria mais depressivo se estivesse naquele buraco cheio de mofo e uma janela que dá pra um muro?
- Muito provavelmente. E ainda estaria tentando arrumar um jeito de me livrar da culpa. Essa culpa toda é muito pesada, doutor.
- E você sabe de onde ela vem, Lucas?
- Não.
- Eu menos.
- Do cristianismo, talvez?
- HAHAHA, boa piada.
- Por exemplo, doutor. Perdi meu fone de ouvido esses dias. Era um fonezinho daqueles Phillips, que custa vintão, mas que te faz economizar no longo prazo, porque dura mais que os de cinco reais que vende na estação de trem. E eu sempre deixava ele junto com minha carteira e minhas chaves, porque só usava pra sair mesmo. Em casa eu gosto dos headphones, que tem mais resposta e deixam o som mais limpo. Faz diferença, doutor. Eu sou chato com essas coisas. Cê tem que ver como fica a voz do Milton com aquele que a Talita me deu...
- Você está desvirtuando o assunto de novo.
- Tem razão. Então, perdi o fone. Aí fui na loja de eletrônicos e comprei outro. Paguei 16, achei bom, quatro reais fazem diferença, doutor, eu tô desempregado... Mas aí meu pai arrumou tudo em casa hoje e sei lá onde ele meteu meu fone Phillips. Agora tenho que ouvir música bem baixinho pra não acordar ninguém.
- E por que não usa o que a Talita te deu?
- Porque ele aperta minha cabeça quando fico muito tempo usando. O ponto é: se eu estivesse num lugar só meu, saberia exatamente onde guardei o fone Phillips.
- Mas será que você precisaria dele? Se estivesse sozinho, poderia ouvir a música que quisesse, no volume que quisesse, em tese.
- É, agora que falei me sinto um bobo por reclamar disso. Mas dá pra sacar a ironia dessa situação né? Relacionando com a saudade de casa e tal. 
- Naturalmente. Mas talvez não esteja com saudade de casa, e sim de si mesmo. O que fizeram com você, Lucas? Ou melhor: o que você fez consigo mesmo para ganhar a aprovação dos outros?
- Essa é uma boa pergunta.
- Sim. Talvez você devesse tentar se lembrar de quem você era antes de sentir falta de casa. Talvez seus pais possam te ajudar nisso. Volte quando tiver a resposta. Seu tempo comigo acabou por hoje. 

domingo, 29 de junho de 2014

Carta pra casa

Agora pego um caminhão,
Na lona, vou a nocaute outra vez


Esse disco é saudade. Instrospecção. Buscar algo em si que não existe. Buscar chão.
Percebi isso hoje, mãe e pai, quando me peguei sentindo falta de casa. Uma saudadezinha besta, sem crise, mas atravessada. O gustavo tava aqui e eu podia pegar carona com ele  e visitar vocês. Mas não fui.
É estranho, porque eu sei que posso aparecer aí a qualquer hora e vai ser legal e tudo, mas sinto falta é de casa mesmo. E não me entendam mal, não tô falando que a nova casa que vocês estão morando é ruim.  Por « casa » entendam como aquela sensação de proteção e conforto que existia antes dessa selva de pedra me engolir.

Amadurecer é mesmo um bicho de sete cabeças. Fui fazer o almoço e coloquei esse disco pra tocar, como já ouvi em vários domingos em Casa. Domingos de vários aromas, cores, temperaturas. E todos eles com o Zé tocando alto nos falantes. Memórias afetivas que hoje reverberam forte na minha cabeça. De saudade, a boa saudade.

Me peguei pensando nos motivos pelos quais este disco sempre tocava em casa, naqueles tempos áureos do bairro Batistini : Minha mãe picando cebola na pia, sob aquele brilho bonito do sol rebatido vermelho da parede sem reboco do vizinho. Meu pai fazendo algum trabalho manual no quintal, entoando versos dessincronizados que ecoavam pelo vão do terreno em declive. Eu e meu irmão jogando videogame, ocasionalmente batendo um no outro.

E lá em casa esse disco tocava. Por quê ? Talvez pelo mesmo motivo que eu, um recém adulto cheio de vontade de realizar coisas, com medo de não suportar responsabilidade demais, ouço ele agora : saudade de casa. Louco ter vinte e poucos né ?

O disco acabou, o macarrão tá pronto.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

O eterno retorno


      • eu tenho um decreto assinado  por alguém mais rico que eu me assegurando um direito que é naturalmente meu, e que me foi usurpado pelo capitalismo e transformado em mercadoria.
      • "de agora em diante, esta terra é minha e todos os que passarem por ela pagarão tributos a mim"

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sobre a liberdade e a Bethânia

- Não é tão fácil assim. Pedi demissão do meu último emprego no dia do meu aniversário. Fui arrogante, assinei minha ~carta de alforria~. Queria a Liberdade de presente, numa bandeja. Afinal, quem não quer?
Cheio de sonhos, queria escrever, queria criar, fazer arte, a minha arte.

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.


Hoje, passeio com o cachorro, limpo a casa, faço o almoço, enquanto espero resposta sobre as vagas de emprego que me inscrevi. Troquei o cigarro pela yoga. Meditação guiada. Maldita ação guiada. Cadê a liberdade? Faz tempo que não escrevo.

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Pois bem, acabou o dinheiro. A arte, nem começou. Como começar o que sempre esteve aqui, antes de mim inclusive? É muita pretensão. E a pretensão prende. 
Por outro lado, uma coleira amarrada eternamente no pescoço também prende. O que mais eu estaria fazendo se não privando o meu cão da sua liberdade, amarrando-o na minha mão? E porque o trato como "meu"? Por que esse sentimento de posse? O cão não é meu, o cão é dele mesmo! Quando foi que minha vontade se sobrepôs à vontade dele?

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


E esse método ridículo de trabalhar para viver e viver para trabalhar? O trabalho é um sistema de culpa automática sujo. Se já é desumano sobrepor a vontade da minha espécie sobre a de outra espécie, por que eu devo submeter a minha vontade à de outro indivíduo da mesma espécie que eu, e que, portanto, é tão capaz quanto eu, mesmo tendo mais dinheiro que eu? E francamente, sobre dinheiro eu nem preciso comentar né?

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...




Mas o meu Calcanhar-de-Aquiles é a imagem. A vaidade. O ego. Tenho que sustentar uma carreira, uma reputação, um lifestyle. Não posso vestir minha bermuda mais confortável para ir até a padaria, porque tenho uma bunda muito grande e ela atrairia a atenção de todos ao redor. Então eu me escondo. 

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


De jeito nenhum ser livre é fácil. Ninguém é pleno e essa plenitude nem existe. Repito: de jeito nenhum ser livre é fácil. Mas é simples, e dá pra sentir cada vez que o coração acelera, ou quando os pêlos arrepiam, ou quando você tem um orgasmo colossal numa tarde de uma quarta-feira. E não há regras pra isso. Aliás, cê já ouviu "Cântico Negro" recitado pela Maria Bethânia?