quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sobre a liberdade e a Bethânia

- Não é tão fácil assim. Pedi demissão do meu último emprego no dia do meu aniversário. Fui arrogante, assinei minha ~carta de alforria~. Queria a Liberdade de presente, numa bandeja. Afinal, quem não quer?
Cheio de sonhos, queria escrever, queria criar, fazer arte, a minha arte.

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.


Hoje, passeio com o cachorro, limpo a casa, faço o almoço, enquanto espero resposta sobre as vagas de emprego que me inscrevi. Troquei o cigarro pela yoga. Meditação guiada. Maldita ação guiada. Cadê a liberdade? Faz tempo que não escrevo.

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Pois bem, acabou o dinheiro. A arte, nem começou. Como começar o que sempre esteve aqui, antes de mim inclusive? É muita pretensão. E a pretensão prende. 
Por outro lado, uma coleira amarrada eternamente no pescoço também prende. O que mais eu estaria fazendo se não privando o meu cão da sua liberdade, amarrando-o na minha mão? E porque o trato como "meu"? Por que esse sentimento de posse? O cão não é meu, o cão é dele mesmo! Quando foi que minha vontade se sobrepôs à vontade dele?

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?


E esse método ridículo de trabalhar para viver e viver para trabalhar? O trabalho é um sistema de culpa automática sujo. Se já é desumano sobrepor a vontade da minha espécie sobre a de outra espécie, por que eu devo submeter a minha vontade à de outro indivíduo da mesma espécie que eu, e que, portanto, é tão capaz quanto eu, mesmo tendo mais dinheiro que eu? E francamente, sobre dinheiro eu nem preciso comentar né?

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...




Mas o meu Calcanhar-de-Aquiles é a imagem. A vaidade. O ego. Tenho que sustentar uma carreira, uma reputação, um lifestyle. Não posso vestir minha bermuda mais confortável para ir até a padaria, porque tenho uma bunda muito grande e ela atrairia a atenção de todos ao redor. Então eu me escondo. 

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


De jeito nenhum ser livre é fácil. Ninguém é pleno e essa plenitude nem existe. Repito: de jeito nenhum ser livre é fácil. Mas é simples, e dá pra sentir cada vez que o coração acelera, ou quando os pêlos arrepiam, ou quando você tem um orgasmo colossal numa tarde de uma quarta-feira. E não há regras pra isso. Aliás, cê já ouviu "Cântico Negro" recitado pela Maria Bethânia?


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Carpinteiro do Universo

Acordou meio lento. Mas o dia tava bonito. Abriu a porta da varanda e encarou o dia. Se espreguiçou caminhando em direção ao banheiro. Seu pé aderia ao chão do jeito que só um chão limpo poderia proporcionar. Havia optado por cuidar mais da limpeza da casa depois que encontrou um carrapato em sua coxa. Colheu os resultados da faxina durante a caminhada. Podia sentir os tacos de madeira do piso.

Lavou o rosto, vestiu uma bermuda e levou o cachorro pra passear. Sem problemas. O canino cagou no pé da árvore da rua de cima. Ele recolheu usando um saquinho branco. O saquinho que guardou três brigadeiros, que ele comeu com sua namorada nas três últimas noites, depois de assistir The Big Lebowski.

Carregou a merda do cachorro até a lixeira em frente à sua casa. "Que vida hein sacola? Ontem brigadeiro, hoje bosta." Em casa, pegou uma garrafa de suco de laranja pasteurizado e se serviu. Conversou com sua namorada pela internet. Ela estava no trabalho. Ele lembrava dela dando um beijo de tchau horas antes, e ele respondia que também a amava. Era quase um sonho. Ele estava muito sonolento.

O dia foi todo assim, sentado, tentando começar uma tarefa e falhando. Se masturbou duas vezes. A janela estava aberta e ele teve receio de ser visto com a mão na massa. Alguém de uma janela a sudoeste tem ampla visão de seu pênis pelo lado esquerdo, caso olhe do canto direito inferior da janelinha do banheiro - ele é canhoto.

Às quatro e vinte da tarde, resolveu tirar as tralhas da varanda, para a casa ter mais um cômodo. Sua namorada ia gostar. Recolheu as roupas do varal e livrou espaço. Se deparou com plataformas de madeira que eles usavam como sofá, quando apoiavam algumas almofadas por cima. Agora eram só plataformas de madeira, criando mofo, encostadas no canto da varanda. Eles pensaram em se desfazer delas, mas ele tinha uma ideia melhor.

Escolheu a dedo o som. Um dos discos novos, que haviam comprado na última feira. Desceu a agulha e os chiados começaram. Um rockabilly característico. Era uma carta saudosista para o futuro.
Deu uns tragos e uns passinhos. "Oxalá, Oxum, Dendê, Oxóssi de não sei o quê".

Apoiou a plataforma sobre um caixote e avaliou seu estado. Muito mofo. Rasgou um pedaço de lixa de madeira e começou o trabalho. Lixando a madeira e observando os folículos do fungo se misturando com o ar. A cada golpe, percebia um misto de oxigênio, madeira e as moléculas tóxicas daquele ser vivo estranho flutuando no ar, em direção aos céu.

O cão parou ao seu lado como faria o Chaves, assistindo Seu Madruga assoviar "Carpinteiro do Universo" e lixar as tábuas do palco do Festival da Boa Vizinhança. O cão perguntou: "o que você está fazendo?". Seu Madruga  respondeu: "saia daqui! Essas esporas de mofo são perigosas e podem ficar grudadas em seu pulmão, entoxicando seu corpo e te matando em questão de minutos!".

O cão foi embora enquanto ele ria da própria piada. Na vitrola, tocava um som mais denso. "O hoje é apenas um furo no futuro, por onde o passado começa a jorrar".A carta pro futuro de novo. Mas dessa vez era quase um testamento. Imaginou o pó que subia indo direto às suas narinas. Levantou para virar o disco.

Voltou e sentiu um ligeiro medo do que estava fazendo, inalando aquela espessa carga de mofo. Mas continuou mesmo assim, descontando na tábua a culpa de estar se suicidando com a melhor das intenções.
Novamente, cada golpe levantava o pó, e ele imaginava a cena de uma guerra civil em câmera lenta, onde o Estado era seu braço libertando o povo mofado, que em contra-golpe invadia seus pulmões e arrancava seus fios da tomada e destruia todos os computadores do sistema nervoso central.

Com metade da capacidade de processamento de dados, ele sentiu sede. O copo em cima da penteadeira estava vazio. Suas mãos tremiam. Foi até o banheiro e se olhou no espelho. Estava saudável. Lavou o rosto uma vez. Sentiu a água gelada batendo em sua cara e escorrendo pelos fios do bigode.

A vitrola disse: "eu ando de passo leve pra não acordar o dia, sou da noite a companheira mais fiel que ela queria", enquanto ele tombava como a estátua de um ditador cruel, durante a cena final de um jogo pós apocalíptico.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

E aí, vamos fazer pornô?

Dias atrás postei um texto que escrevi dentro do trem, enquanto ia para a faculdade. Foi um desabafo, uma tentativa de buscar fôlego, como se eu estivesse em um quarto hermeticamente fechado que começasse a inundar por um motivo desconhecido. A água sobe e o corpo bóia, mas chegando no teto, você tem que lutar pra respirar.
Esse texto me serviu de sobrevida até agora. Infelizmente é assim que vivemos hoje em dia, tendo que pular de galho em galho pra sobreviver e tentar um rumo na própria vida.
Não quero entrar no mérito político disso tudo, porque é tanta porcaria que não consigo nem tecer um raciocínio livre de intervenções maléficas baseadas em interesse e egoísmo. Existe uma força externa, que pressiona, incessantemente, as pessoas, coletivamente, para que sigam uma maré imaginária que só beneficia um pequeno grupo. Não sou o inventor da roda, isso é óbvio, mas parece que ninguém está enxergando.
Quando eu escrevi o texto do trem, imaginei que pudesse soar mal, porque ofende a ordem e o bem estar social. Poxa, todo mundo quer viver em paz, e pra viver em paz, deve haver ordem e disciplina. É o que dizem. Mas isso parece meio desequilibrado.
Ultimamente tenho visto as pessoas concordando com coisas ridículas que só me fazem questionar o quanto estamos nos distanciando do humano e nos aproximando do virtual-utópico. Estamos destruindo nossa personalidade mundana e nos transformando em perfis de facebook. É como um filme de ficção científica complexo, onde nosso corpo é só parte da matéria que compõe a Terra, mas nossa consciência está presa num computador, numa vida virtual, onde todos somos rebanhos vivendo felizes e prosperando para o bem do grupo.
Mas quem disse que eu quero viver em prol do grupo? O Papa? O Obama? Deus? E quem disse que viver em prol do grupo é uma coisa boa? Não para mim, pelo menos.
Seguimos o caminho do pastor, que nos ensina a aceitar tudo que não podemos mudar. Nos ensina a ser complacentes com o caminho que nos submeteram.
Voltando à metáfora do quarto fechado: antes eu me perguntava o por quê de estar lá dentro, agora eu me pergunto o porque da água estar me sufocando. Em breve não farei mais perguntas, porque vou aceitar o condicionamento e vou viver como um peixe, ou qualquer outra coisa que moraria num aquário hermeticamente fechado com a água das regras para o convívio e o bem estar coletivo.
BEM ESTAR COLETIVO é eufemismo pra paumolescência, e isso é o pior que podemos esperar de nossa sociedade. E aliás, esse é o motivo desse manifesto. Anota aí: BEM ESTAR COLETIVO É PAUMOLESCÊNCIA.
Eu vou explicar: Sou torturado todos os dias. Sou torturado pelo adesivo de "mantenha a esquerda livre pra circulação" e pelo de "proteja seus pertences", sou torturado pelo julgamento alheio, sou torturado pelos cartazes de "mais amor por favor", sou torturado pelo excesso de pacifismo de uma população.
Cansaço. Esse é o motivo. Estamos todos cansados demais pra sermos humanos.
E quando tudo é cansaço, tudo é preguiça, tudo é inércia, optamos pelo conforto. Gado tranquilo é carne macia. Nos empanturram 1000 gifs de gatinhos fofinhos, nos ensinam a decorar nossa casa, nosso ninho, nossa toca. Conforto e praticidade para você não precisar sair da jaula. Comida processada. Programação 24h. Conectividade a mil. Google Street View. Maratona pra manter o corpo em forma. Veganismo. Cachorro com stress. Ofurô. Ascensorista. Vagas vip. Balada top. Top 10 vídeos da internet. Miley Cyrus. Bistrô gourmet.
(pausa)
E agora eles vem mexer na minha pornografia? "Mimimi, não precisamos disso, queremos sexo saudável e real". "Contente-se com a Sasha Grey no programa do Danilo Gentili, olha como somos legais" "50 Tons de Cinza é um livro ousado!"
Enquanto isso, no metrô, a esposa está marcando um encontro com seu ginecologista. Ele provavelmente conhece aquela buceta bem mais a fundo que o marido.
Tenho vontade de bater com meu pau na cara desses falsos moralistas que defendem o amorzinho. Que choram vendo clipe de casamento do Marcelo Jeneci. E olha que eu já tentei me adequar hein? Não é nada pessoal, é o mundo que precisa explodir.
Falei pra minha namorada: "quando estamos sobrecarregados com alguma injustiça do sistema, tomamos uma atitude. Uns picham o muro, outros tocam hardcore. Eu vou fazer pornografia."
E espero que Deus esteja comigo. Caso contrário, será blasfêmia e nos encontraremos no inferno.