Quando acordou, o Sol já estava quase no meio do céu. Se
ainda estivesse na tribo, acordar essa hora seria abominável. Porém, ele havia
sido expulso do bando. Não era bom em caça, nem pesca, nem construção e nem era
forte. Ele sabia todas as coisas, mas não era tão bom quanto os outros. Foi expulso.
Aquela toca que ele encontrou não era confortável. O som dos
animais noturnos lhe assustava e ele só conseguia dormir quando algum raio de
sol despontava no céu.
Acordou e tinha fome. Teve que sair para caçar. Suas armas e
ferramentas eram bem rudimentares. Foram construídas por ele mesmo. As amarras
de seu machado sempre soltavam.
Beijou seu amuleto, juntou os trapos e saiu. A pouca
distância dali, encontrou um pé de folha. Haviam boatos de que ele trazia
revelações. Arrancou uns talos e saiu caminhando e mastigando a planta. O vento
ainda soprava a mesma melodia em seu ouvido. O sol ainda batia em seu rosto.
Tinha que atravessar um grande rio, que estava cheio, por
causa da tempestade. A corrente era muito forte, mas ele sabia atravessar. Caminhou
firme, mastigando seu talo de folha. Num ato de impulso, pegou uma pedra e
arremessou no fundo do rio. A pedra afundou de uma vez, mas não fez um som de
mergulho. Parecia que tinha batido em algo. Um peixe, talvez?
Atravessou o rio. Ficou pensando no peixe que havia matado. Foi
sem intenção, mas era uma oportunidade a ser aproveitada. Foi quando o pé de folha
o deixou meio tonto. Que estranho! Será que os xamãs estavam certos?
Não sentia as extremidades dos dedos. Sua cabeça ficou
pesada. As coisas começaram a girar e ele não aguentou. Caiu nas raízes
expostas de uma grande árvore, de tronco grosso e firme e copa frondosa e
imponente. O som das corredeiras ainda ecoava em seu pensamento, mas ele não
conseguia ficar de olhos abertos.
Acordou numa caverna diferente. Era arejada, fresca e
iluminada. Havia dormido no sofá (sofá?) vendo o canal de compras (canal de
compras?). O sol batia na janela e seu cachorro latia alto. Havia sonhado com
uma caixa de plástico com luzes que iluminavam diretamente o seu rosto. Estas luzes,
ordenadas, formavam símbolos que ele decodificava como ideias. Alguém falava
com ele. Ele lia as mensagens com a voz de uma outra pessoa.
Era estranho pensar que ele não sabia onde estava, mas
conhecia cada objeto que compunha o cenário: a tv, o sofá, o abajur, o
cachorro, a mesa de centro, a janela, o celular, o ipod... o que havia
acontecido com a caverna que ele morava? (“que caverna? Sempre morei aqui!”)
Foi ao banheiro, mijou, deu descarga, escovou os dentes. Passeou
com o cão. Preparou o café e tomou vendo tv. Entrou na internet (internet?) e
sua garota falava com ele. Era aquele mesmo esquema de luzes que, juntas,
formavam símbolos e ele identificava como letras e palavras. Ele estava usando
a caixa.
Sentiu fome. Não tinha o que comer. Pegou seus pertences e
saiu, procurando alguma lanchonete (lanchonete?). A selva estava esquisita. Ao invés
de árvores, pedras eram empilhadas uniformemente de modo que as pessoas ficavam
entre elas e não se machucavam. Essas pedras empilhadas tampavam o sol, fazendo
parecer noite em determinados lugares.
Caixas grandes de metal carregavam pessoas, deslizando por
uma superfície preta, dura e áspera. Quem não estava dentro das caixas, andava
em outro lugar, paralelo ao asfalto, e raramente pareciam impressionadas. Tinham
todos o mesmo semblante.
Essas pessoas pareciam não estar em busca de alimento,
embora estivessem, sim, com fome. Todos tinham o mesmo sentimento: cansaço. “Quando
eu me canso, eu vou dormir” pensou.
O sol já havia passado do meio do céu. Deveria ser mais de
três da tarde. Seguiu em direção à Avenida Paulista, embora não soubesse como
conhecia o caminho, nem tampouco a própria Avenida. Então, por que estava
acreditando que conhecia aquele lugar, se não o conhecia?
Tirou um cigarro do bolso da jaqueta e acendeu. O sol batia
em sua cara. Ligou o ipod e começou a ouvir um som que parecia um trovão
cadenciado, que mudava de tom de acordo com o ritmo dos tambores. Isso fazia
explodir seus tímpanos, mas era bonito. Ele se perguntava como aquela caixinha
pequena podia tocar uma melodia e transmiti-la diretamente para seu ouvido.
Quando o cigarro acabou, ele estava cruzando o viaduto da 23
de Maio. Parecia muito com o rio que ele havia cruzado para pescar (Rio? Pescar?).
O fluxo de caixas/carros era muito intenso. Qualquer movimento em falso e ele
poderia cair lá embaixo e ser atropelado (?). Jogou a bituca pelo vão da grade
e observou-a cair em câmera lenta, ainda acesa.
A Avenida Paulista era um corredor de caixas, pedras e
pessoas. Era grande e ameaçador. Seria muito difícil caçar lá. Mas ele
precisava comer. Viu um homem soltando fumaça pela boca. A mesma fumaça saiu da
chaminé de um ônibus (ônibus?). Outro homem apontava uma máquina para o topo
das pedras empilhadas. Instintivamente, ele olhou para cima e viu um desenho
gigante e colorido, na lateral da pedra.
As únicas pessoas falando conversavam através de um pedaço
de metal que elas colocavam perto dos ouvidos. O nome daquilo era celular. Estranho.
Ele sabia usar. Tinha um desse em casa. Falava com a namorada por esse
dispositivo.
Sentou numa cadeira, numa lanchonete em frente ao Museu de
Arte de São Paulo. Estava acontecendo um encontro de tribos que gritavam e
faziam muito barulho. Pareciam se preparar pra uma guerra.
Foi quando um pássaro de aço gigante rasgou o céu, flutuando
através de chifres que rodavam muito rápido. O pássaro não tinha asas, e estava
indo em direção ao viaduto da 23 de maio.
O barulho do pássaro o deixou muito confuso. Era um som
muito alto e grave, como várias explosões ou uma frequência muito alta de
batuques no tambor. Helicóptero.
Acordou assustado. Estava na base da árvore frondosa e imponente. Seu estômago roncava com violência e fazia um barulho oco e grave. Parecia o do pássaro de aço. Estranhamente, uma frase de idioma desconhecido estava na sua cabeça: “carro explode misteriosamente embaixo do viaduto da 23”.
Amei o texto!
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