terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

É isso e mais nada...


As formigas operárias buscam alimento  cada vez mais longe de seus formigueiros. Na selva (que pode ser a mata atlântica ou o jardim do quintal) elas defendem suas vidas com a força delas mesmas. Suas garras são suas armas – uma picada de formiga não é algo muito agradável.
Enquanto isso, no núcleo do formigueiro, a rainha produz novos súditos. Cada vez mais gorda, perdeu a habilidade de se defender, então, depende da ajuda de sua população. A rainha não conhece o incômodo da picada de uma formiga. Pra ela poderia ser fatal.

Ontem a noite, morreu um cara na periferia de São Paulo. Falava no celular com a filha, na janela de casa. Talvez depois de um longo dia de trabalho. Levou chumbo na cabeça, direto. Uma bala perdida. Talvez vinda da arma de um policial. Talvez. Muita coisa acontece em uma madrugada. Muita gente amanhece com a boca cheia de formigas. Pode ser na mata atlântica ou no jardim do quintal.
Na periferia, cada um se defende como pode.

O formigamento nas extremidades do corpo é um sintoma comum de ansiedade, medo ou nervosismo. Caminhando pela Av. Paulista, eu (ex. formiga e atual gafanhoto) abordei um policial que caminhava tranquilamente com seu parceiro, assegurando a ordem e a disciplina (ou o progresso). Perguntei onde era a FNAC. Me respondeu com olhos de ‘’tenho cara de guia turístico ?’’ e eu agradeci com cara de ‘’servir e proteger a população é o seu lema, certo ?’’. Engraçado como às vezes a gente fala com palavras uma coisa, e ao mesmo tempo, com os olhos a gente diz outra.

Segui meu caminho e vi muita gente diferente. A Avenida Paulista de segunda feira na hora do almoço é um verdadeiro formigueiro. Funcionárias voluptuosas com saias no joelho e decotes abertos até o terceiro botão. É assim que elas ganham a vida. Chefes de departamento gordos e suados, discutindo qualquer coisa que tivesse a ver com círculos. Pode ser futebol, os seios de suas funcionárias, os ‘’gráficos de pizza’’ dos seus investimentos, ou até mesmo, o formato de seus corpos. Esses homens adoram falar sobre si mesmos.

Vi homens engravatados falando sozinhos com bíblias na mão. Vi homens engravatados falando sozinhos com pastas na mão. Vi mulheres falando sozinhas com crianças na mão. Ciclistas, skatistas, empresários e turistas. Todos estavam ali, e ali era o lugar de todos. Só não dos artistas de rua. Estes atrapalham a coexistência da população ali. A arte é pra ser apreciada, e pra isso, não se deve atrapalhar. A beleza daquele lugar é feita de concreto e aço retorcido. Artista de rua ali, deve ser, no máximo, uma daquelas estátuas humanas.

E ali tinha policiamento. Em cada quadra, uns quatro guardas. Todos trabalhando em prol da segurança e conforto dos habitantes da cidade. As formigas guardiãs faziam seu serviço onde ele deve ser feito : dentro do formigueiro. As operárias ficaram às margens, lutando pela sobrevivência com as próprias garras e servindo de notícia ao sensacionalismo barato do entretenimento diário. É pra isso que elas servem : produzir alimento para a rainha, construir o palácio real, sustentar a base da pirâmide hierárquica do formigueiro.

Sendo assim, pra quê se preocupar com o homem que morreu com uma bala perdida enquanto falava no celular, na noite passada, na periferia de São Paulo ? Permaneci apático, passando sem perceber as pessoas. Ignorando pedintes de dinheiro, comida e/ou atenção. Estou errado, ou não ? Quem está com a razão ?

Entrei num shopping para almoçar. Onde mais eu poderia ? Subindo as escadas, segurando no corrimão, desviei do contato manual com um funcionário do Mc Donald’s. Ele nem me notou. Eu nem o notei. Comendo uma pizza de ontem, uma bicha velha me abordou de maneira tão cafona que eu fiquei me perguntando se aquele xaveco realmente funcionava. ‘’sou artista plástico’’, ele disse, ‘’você é muito interessante’’. Respondi que eu não fazia o tipo dele. Ele foi embora e nem pediu desculpas.

Resolvi largar a pizza pra lá e voltar pra minha toca. Essa selva de pedra é realmente perigosa e eu não tenho muita habilidade em me defender. Desci para o subsolo junto com outros insetos. Passei pelos túneis sujos do metrô até chegar no meu destino. Subi para a superfície e me incomodei com o frio. Talvez meu lugar não seja nem no núcleo, nem na selva. Talvez seja nas entranhas úmidas, quentes e apertadas do grande centro da cidade-formigueiro.
"Diz então se beijarias minha boca cheia de formigas agora que é isso e mais nada..."
(Nenê Altro) 
 
 
 


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